“Maldição Africana” ou as muitas faces do racismoPor Marcio André dos Santos
Possivelmente estamos presenciando um dos piores momentos da história do Haiti. As conseqüências do terremoto sobre o país são, no mínimo, de dimensões bíblicas. A precária infraestrutura existente e os diversos esforços feitos por haitianos e a comunidade internacional ruíram junto com as edificações. Anos e anos de trabalho duro juntaram-se aos pós dos escombros.
Os mortos estão empilhados nas ruas, espalhando o cheiro da morte e da angústia por toda parte. Covas coletivas foram feitas nas proximidades da capital e a população sobrevivente perambula completamente faminta e atônita. Gangues de desesperados se reorganizam a fim de pilhar qualquer coisa que apareça. O cenário não poderia ser mais caótico. É o horror em sua face mais crua.
Em meio a tanta desgraça eis que jornalistas flagram o cônsul do Haiti no Brasil, um homem branco, dizendo em off que a tragédia que está ocorrendo com o povo haitiano é “boa para o país”. Boa? Será que ouvi bem? E mais: de que tal desgraça deve ser resultado de “macumbas” feitas pelos próprios haitianos. E, como se absurdo não bastasse, afirma que os africanos – todos eles, todos nós – carregam uma “maldição” dentro de si. Na visão do cônsul branco do Haiti nós, homens e mulheres negros, somos o Mal.
A declaração do cônsul tem um nível de gravidade elevadíssimo, absurdo. O racismo subjacente em sua declaração remonta a todo um imaginário propagado por séculos nas culturas ocidentais sobre os africanos e os povos não-brancos de todo o mundo.
A “maldição de Cam” é o mito mais difundido no mundo ocidental contra os africanos, seus valores culturais, simbólicos, civilizacionais. Na Antiguidade era partilhado tanto por europeus quanto por árabes, os primeiros a se beneficiarem com o tráfico de escravos para a região do atual Oriente Médio. Cam teria visto o pai deitado nu, Noé, que lançou sobre ele a maldição de que seus filhos seriam escravos dos seus irmãos e seriam “escuros como a noite”. Dessa maneira tem-se um dos argumentos teológicos da escravização dos africanos ao longo dos tempos e que no Brasil foi amplamente usada pela Igreja Católica a fim de justificar a opressão anti-negro.
A declaração do cônsul George Samuel Antoine reedita este imaginário, absolutamente racista, tosco, imprudente sobre a catástrofe que acomete milhares de haitianos e que, neste exato momento, ainda lutam pela sobrevivência, seja debaixo dos escombros ou implorando comida e água nas ruas.
O Haiti é um país majoritariamente católico. No entanto, as tradições religiosas ancestrais dos africanos desempenham um país importante no imaginário de todos. O Vodum, como o candomblé no Brasil, foi e tem sido um elemento fundamental no sistema de crenças desse povo. Afirmar isso não é o mesmo de avaliar se esta ou aquela prática religiosa é boa ou ruim. Pelo contrário, toda prática religiosa deve ser vista em uma perspectiva que a valorize antropologicamente, ou seja, em sua relevância simbólica e material para os crentes.
Portanto, junto com o racismo explícito na declaração do cônsul, tem-se também um profundo sentimento de intolerância religiosa que não devia se coadunar com nenhuma autoridade.
De maneira irônica ou totalmente criminosa este senhor deixa transparecer o pior do ranço colonialista desumano que alguém nesta posição é capaz. Esse cônsul não representa mais nada. Não é ninguém. É um impostor. O povo do Haiti merece dignidade e respeito, ainda que sob os efeitos dos ditames da natureza.
É sempre difícil ver atitudes como está e será que vamos um dia livrar-nos deste estigma? Sim! A luta não acaba sem a evolução individual, familiar e coletiva de todos e por todos. Já sabemos quem são, porem quem somos? Fora da estatística dos institutos do governo, privados e ONG. Estamos perdendo para nos mesmos é o que observo com as informações. Quando nos seremos um povo em igualdade de informação e acesso. Precisamos de uma linguagem própria e uma política abrangente.
ResponderExcluirSaudações Ecossociais.