PONTO DE VISTA
DOIS ANOS DE POLÍTICAS DE COTAS NA UERJ: “BALANÇO DO BALANÇO”
Por Helio Ventura*
Novembro de 2004
Ocorreu na Capela Ecumênica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), entre os dias 25 e 27 de outubro de 2004, o evento “Dois anos de Políticas de Cotas: balanço e perspectivas”, realizado pelo Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira (PPCor) do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da UERJ. Na ocasião, ocorreu o lançamento do “Mapa da Cor no Ensino Superior”, estudo do pesquisador José Luis Petruccelli baseado no Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não por acaso, resolvi fazer um “balanço do balanço” que esse evento se propôs a fazer. O evento me marcou por alguns acontecimentos e constatações. O primeiro deles descrevo a seguir: a Reitora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Ivete Sacramento, que compunha a segunda Mesa de Abertura do evento, apresentava a experiência da implementação da política de cotas na UNEB, demonstrando dados, números e situação concreta dos alunos atendidos pela medida. O ponto alto de sua fala foi quando ela indagou ao Reitor da UERJ, Nival Nunes de Almeida, também à Mesa, qual o número de alunos negros e de cotistas que a UERJ atendia, deixando-o ruborizado e extremamente constrangido diante do questionamento que não soube responder.
Este episódio já dava a tônica do que seria o evento. Um reitor ruborizado e constrangido por não saber o número de alunos cotistas atendidos na universidade a qual está a frente é, no mínimo, motivo de preocupação. O Reitor mostrou que não foi dada, da parte da UERJ, a devida importância ao assunto – ou que foi incompetente ao tratá-lo – a ponto de nem mesmo se preparar para um evento onde se esperava que a Reitoria, ou mais precisamente a Sub-Reitoria de Graduação transmitisse dados concretos elaborados a partir do suposto acompanhamento feito pela universidade aos alunos cotistas – como o que foi satisfatoriamente apresentado pelo Vice-Reitor da Universidade de Brasília (UnB), Timothy Martin Mulholland. Em um evento que se propunha, ao menos no título, fazer um balanço de dois anos de cotas na UERJ, um reitor não estar de posse destes dados é inadmissível. Os coordenadores do PPCor, Pablo Gentili, e do Projeto Espaços Afirmados, Fátima Lobato, também revelaram desconhecer estes dados.
Também foram inadmissíveis e frustrantes algumas ausências. Não foram “lembrados” vários atores importantes que protagonizaram a construção e a discussão de todo processo que acabou por desaguar na política de cotas em universidades. A primeira ausência foi a do Movimento Negro, que ao longo das décadas tem, entre outras coisas, pautado a necessidade de ações afirmativas para a constituição de uma sociedade mais justa e com menos disparidades. Os militantes que compunham as Mesas lá estavam para representar suas instituições acadêmicas ou governamentais, e não enquanto militantes. Portanto, o Movimento Negro e suas determinantes contribuições não tiveram espaço no evento.
Outra ausência sentida foi a dos vários movimentos que trabalham com cursos pré-vestibulares populares (PVP's), que atentam especificamente para a questão da democratização do acesso à universidade, alguns há mais de 10 anos, como é o caso do PVNC – Pré-Vestibular para Negros e Carentes, que atua desde 1993 no estado do Rio de Janeiro. A ONG Educafro, único PVP que teve espaço no evento, sendo inclusive condecorado, não representa a variedade de anseios do conjunto de PVP's existentes, dos quais difere até mesmo por sua própria estrutura organizacional. Outros PVP's independentes, sem estarem articulados em rede, também têm contribuições relevantes a dar.
Ainda no tocante aos PVP's, percebendo tardiamente a lacuna que havia deixado, o PPCor convidou de última hora o PVNC – movimento do qual um dos coordenadores do PPCor é oriundo – para compor uma das Mesas do evento, o que não foi aceito pelo movimento.
O que falar da ausência dos cotistas? Como não ouvi-los quando se propõe avaliar as cotas? Aliás, esta já é uma prática comum da Sub-Reitoria de Graduação da UERJ, que já divulgou uma suposta pesquisa, conduzida por uma metodologia no mínimo curiosa, onde os alunos da universidade, cotistas ou não, foram tratados como números apenas, sem se fazer uma real análise sócio-econômica e de desempenho acadêmico destes alunos, sem se atentar para questões intrínsecas aos avaliados.
Quando me refiro a ouvir os cotistas não é apenas colocar um cotista aleatoriamente como debatedor em uma das Mesas – aliás, com um fardo pesado por demais para carregar, pois ficou subentendido que ele representava todos os cotistas, e um erro ou deslize refletiria em todos eles indistintamente. Por coincidência, este aluno cotista é meu amigo e solicitou-me indicação de leitura para se preparar e não cair na “arapuca armada”. Avalio que este aluno cotista foi posto ali como forma de legitimação por parte dos organizadores do evento, assim como também é por pura legitimação o PPCor ter um coordenador negro em um programa que é sabidamente gerido por brancos. Coroando o descaso com quem deveria ser o destaque no evento, colocaram, também de última hora, uma aluna cotista do 2º período de Direito para “tampar buraco” enquanto Ricardo Henriques, da Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo, não chegava.
Por fim, os vários movimentos e coletivos estudantis foram ignorados. Os estudantes pertencentes a estes movimentos demonstram possuir um acúmulo de discussão sobre o assunto e sempre se posicionam criticamente, principalmente os que são sensíveis ao tema e atuam no espaço da própria UERJ, como é o caso da Comissão de Alunos Cotistas e do Coletivo de Estudantes Negros do Rio de Janeiro. Este último, durante realização de um ato público em junho de 2004, que culminou com uma ocupação à Reitoria da UERJ, já esteve em reunião com a Sub-Reitora de Graduação Raquel Villardi, onde se questionou a metodologia utilizada na pesquisa de avaliação dos alunos cotistas da UERJ, o propósito para o qual ela foi utilizada e a forma como foi divulgada. Nesta reunião, Raquel Villardi disse que “não havia dado informação alguma para que a imprensa divulgasse, e não podia controlar o que a imprensa publica”. Pressionada pelos estudantes, ela assumiu o compromisso de fazer um pronunciamento público para explicar o episódio, o que não foi cumprido. Mesmo se o fizesse, seria por instrumentos de comunicação internos da universidade, sem o mesmo alcance que a grande mídia possui.
Nem mesmo os Centros Acadêmicos (CA's) e o Diretório Central dos Estudantes (DCE) foram considerados, base que constitui a União Estadual dos Estudantes (UEE) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) que, aliás, sempre se posicionaram contra as cotas para negros. Gustavo Petta, presidente da UNE, oportunamente colocou-se favorável à medida, com o intuito de estabelecer uma repentina e agora interessante aproximação com o Movimento Negro Estudantil.
O Projeto Espaços Afirmados (ESAF), uma exceção no que se refere ao apoio à permanência dos cotistas da UERJ, não teve seu contrato renovado com a Fundação Ford, que financia o PPCor, e será extinto, como tentou despistar Fátima Lobato, uma das coordenadoras do projeto.
Para finalizar, não posso deixar de citar duas demonstrações de preconceito e racismo por parte de representantes da UERJ. Primeiro, Márcia Souto Maior, do PROINICIAR/SR1/UERJ – outro projeto voltado para os cotistas – se referiu preconceituosamente aos cotistas como sendo, palavras dela, “sem cultura”, “sem educação” e “sem saber falar direito”. Depois, o Reitor Nival Nunes de Almeida fez óbvia menção à classe social de um militante do Coletivo de Estudantes Negros que havia feito uma provocação à Mesa e necessitou se ausentar em seguida. Absurdamente preconceituoso e racista, presumindo a partir da cor da pele do estudante, em tom irônico ele disse que o estudante provavelmente teve de se ausentar por suas condições precárias de transporte para voltar para casa. Ou seja, o que deveria ser motivo de aflição por parte do Reitor, inspirando uma medida para solucionar a dificuldade constatada – o que não era o caso, pois este estudante mora na Rua São Francisco Xavier, onde se localiza a UERJ – ao contrário, ele demonstra descaso e zomba da situação.
No encerramento, era nítido que eu não estava no evento que havia me interessado por se propor a fazer um balanço e avaliar as perspectivas da implementação das políticas de cotas na UERJ. Se estivesse neste evento, ele teria sido um fracasso total. Na verdade, inconscientemente eu estava em outro evento que tinha um nome incompatível com o que propunha. Ele deveria se chamar “Dois anos de Políticas de Ação Afirmativa do LPP: balanço e perspectivas das atividades realizadas pelo PPCor”. Este foi o evento que realmente aconteceu, e muito bem feito, diga-se de passagem. Tão bem feito que percebi, ao final, que a UERJ “toma a lição” das outras universidades, mas deixa de fazer o seu próprio “dever de casa”.
* Helio Ventura é cientista social, membro do PVNC Núcleo PJ, Coletivo de Estudantes Negros RJ e assistente de projetos do CERIS.
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